sábado, 3 de dezembro de 2011

A PSICOLOGIA JURÍDICA EM CASOS DE VIOLÊNCIA INTRAFAMILIAR

Morgani Moreira Dutra

Primeiramente, seria interessante considerar o termo família, como afirmado pelo Ministério da Saúde (2001), um grupo de pessoas com vínculos afetivos estabelecidos, podendo ser eles consanguíneos ou não. Este grupo é o responsável por transmitir aos seus descendentes, noções de valores e costumes que irão estruturar as suas personalidades. Convém destacar que todo grupo familiar é composto por sentimentos ambíguos, pois cada membro busca de alguma forma o seu reconhecimento dentro da família. Assim, se o grupo familiar não estiver preparado para lidar com os conflitos inerentes a sua própria constituição, a violência pode emergir como um grave sintoma.
Sendo o conceito de violência amplamente difundido e conhecido, seria importante salientar apenas que, quando se fala em violência, não se trata apenas do abuso físico, pois, como sugere Gonçalves (2003), as formas de abuso definidas pela literatura incluem, além deste, o abuso sexual, o psicológico ou emocional e a negligência. Contudo, atualmente também fala-se de violência patrimonial e de violência moral, como consta na Lei 11.340 de 7 de agosto de 2006, sobre a Maria da Penha. Gonçalves (2003) também aponta para o fato de que os primeiros registros de violência intrafamiliar datam de, aproximadamente, 1860, mas que somente cem anos mais tarde a ciência passou a se ocupar deste grave problema que vem atingindo a sociedade ao longo dos tempos.
A violência intrafamiliar pode abranger todas as modalidades de abuso citadas anteriormente. Desta forma, Cesca (2004) afirma que quando se fala deste tipo de violência, deve-se considerar qualquer relação de abuso estabelecida no âmbito privado da família, envolvendo toda ação ou omissão capaz de prejudicar a saúde, o bem estar e o desenvolvimento de um ou mais membros da família. A violência, quando dentro da família, sempre mantém relações de poder que podem ser praticadas por alguém que exerça uma função parental ou mesmo que não tenha consanguinidade em relação ao sujeito subjugado, mas que tenha algum vínculo afetivo com ele. Neste ponto diferencia-se a violência intrafamiliar da violência doméstica, pois a última pode incluir outros indivíduos que estejam esporadicamente no espaço doméstico estrito, sem laços afetivos firmados, contudo, abrangendo todos os tipos de violência especificados.
Gonçalves cita Belsky (GONÇALVES apud BELSKY, 1993, p. 114) ao afirmar que a violência deve ser reconhecida como produto de vários elementos determinantes que atuam diretamente sobre os sujeitos, entre eles a família, a sociedade e a cultura. Determinantes de ocorrência da violência devem ser investigados no balanço entre fatores de risco e fatores de segurança e proteção, no caso, dentro do grupo familiar. Isto significa que os abusos nunca ocorrem por uma única causa e, além disso, não existem causas pré-determinadas para o acontecimento de um ato violento, o que existem são sinalizadores particulares à dinâmica de cada família.
O Ministério da Saúde (2001) adverte que a violência intrafamiliar se tornou um problema de saúde pública que tem repercutido na vida de uma parcela considerável da população brasileira. Assevera que este tipo de violência “é um problema social de grande dimensão que afeta toda a sociedade, atingindo, de forma continuada, especialmente mulheres, crianças, adolescentes, idosos e portadores de deficiência.”
Dados colhidos pelo Ministério comprovam que a violência intrafamiliar contra a mulher ocorre, na maior parte dos casos, por parte do marido ou companheiro. Os registros de ocorrência na Delegacia da Mulher são grandes, mas é claro que os números reais superam, e muito, as estatísticas. Os casos de violência deste gênero contra crianças e adolescentes geralmente não são notificados, levando em consideração que os autores dos abusos são, na maioria das vezes, os seus genitores. Considerando a população idosa, não se tem um perfil exato da vítima ou do agressor, apenas se pode afirmar que as mulheres acima de 65 anos são mais atingidas que os homens e que, além disso, os casos de negligência têm superado o abuso físico, sendo que são raros os casos que chegam a ser denunciados. Existem poucos dados sobre a violência intrafamiliar praticada contra portadores de deficiência. Os casos registrados são quase sempre notificados por vizinhos ou instituições que os atendem e geralmente são realizados por pais que não sabem lidar com a situação e com as necessidades especiais dos filhos.
Pela amplitude e complexidade da problemática, é importante que os serviços de atendimento sejam guiados por uma perspectiva interdisciplinar, onde o compartilhamento de saberes seja capaz de potencializar as ações dirigidas às famílias perpetradas pela violência. Entretanto, a discussão aqui proposta pretende focalizar a atuação do psicólogo dentro do Judiciário.
No Brasil, a Psicologia Jurídica ainda é recente como campo de atuação. Segundo Cesca (2004), foi só em 1980 que o psicólogo começou a atuar na área judicial e apenas em 1985 teve cargo consolidado dentro do Sistema Judiciário, no intuito de contribuir com a eficiência jurídica. Tratando-se de casos de violência dentro da família, a Psicologia atua juntamente ao Direito Civil, mais especificamente, ao Direito da Família. Assim, sobre o atendimento às famílias, Cesca cita Silva (2003) para argumentar que a tarefa do profissional da Psicologia consiste em compreender a comunicação estabelecida na dinâmica familiar ocultada por trás das relações processuais, com o objetivo de auxiliar o juiz a tomar decisões que atendam às necessidades dos sujeitos que dela fazem parte, cumprindo a garantia dos direitos previstos pela legislação.
Tendo em vista que crianças e adolescentes são as maiores vítimas de abusos dentro do núcleo familiar, a mesma autora ainda assinala que o afastamento destes das suas respectivas famílias deve representar a última alternativa, levando em conta que por menos sadia que a família seja, é com ela que a criança ou o adolescente se sentem identificados e, portanto, o distanciamento não traria muitos benefícios. Neste sentido, o psicólogo pode verificar todos os recursos disponíveis para trabalhar a reestruturação familiar, avaliando também quais recursos a própria família dispõe para remodelar a base comunicacional e reconstruir as relações fragilizadas. Infelizmente, são poucos os casos em que a família recebe a devida atenção e, em consequência disto, o filho afastado dos maus-tratos não retorna ao lar.
Cesca (2004) considera que isso ocorre porque a Justiça ainda se basta pelo modelo retributivo. Mas, não basta punir o agressor, o psicólogo deve auxiliar a família em seu processo de recomposição o que inclui a reabilitação do autor dos abusos. Contudo, ele não faz isso sozinho, necessita do apoio do serviço social e do jurídico para que haja a devida união dos saberes necessários.
Outro aspecto falho mencionado por Cesca (2004), é que a maioria dos casos prioriza a constatação da violência e a preservação da vítima, esquecendo que ela advém de um grupo onde existe uma problemática compartilhada que revela transtornos e propaga modos relacionais que transcendem gerações através da violência. Isto reflete a pouca importância da Lei sobre a qualidade da vida familiar e de cada um dos seus integrantes, além do fato de que sozinha não é eficiente para terminar com o problema da violência doméstica e intrafamiliar.
Em concordância aos apontamentos de Cesca (2004), deve-se dizer que, apesar de o psicólogo ter conhecimento do que deve fazer para priorizar a proteção da família, existem muitos entraves diante da sua atuação, pois as perícias e os laudos psicológicos que realiza não tratam da materialidade dos casos, como as agressões físicas, mas de agressões não menos doloridas e que podem jamais cicatrizar. Contudo, elas tendem a ser desprezadas pela imaterialidade dos fatos, o que acaba por conjurar novos abusos dentro do meio familiar.
A autora ainda destaca que, apesar de todos os empecilhos ao seu trabalho, o olhar do psicólogo deve ser amplo, capaz de abranger todos os contextos do qual uma vítima de violência intrafamiliar faz parte, a sua família, a sua comunidade e a cultura que circunda estes sistemas. Isto significa que o trabalho adequado não é suficiente quando fechado no Judiciário. Este deve abrir portas para possibilitar a mediação e intervenção das equipes técnicas competentes diretamente com a vivência dos casos de violência intrafamiliar que chegam ao Jurídico. Isto quer dizer que as famílias necessitam ser atendidas por um período que possibilite o reconhecimento das suas demandas e, a partir daí, realizar as intervenções mais pertinentes.
A proposta de trabalhos preventivos é outra forma bastante efetiva de lidar com a violência intrafamiliar mencionada por Cesca (2004), da qual o psicólogo também deve fazer parte, juntamente a uma equipe multi e interdisciplinar, trabalhando diretamente com as necessidades das comunidades de forma a evitar que muitos conflitos tenham de chegar aos trâmites da Justiça. Embora já existam movimentos neste sentido, a articulação entre os profissionais competentes ainda precisa ser trabalhada, tendo em vista que muitos não estão capacitados para tal tarefa e não sabem como desempenhá-la.
É preciso concordar com a autora quando diz que o trabalho com a violência intrafamiliar, muitas vezes, acarreta em frustrações, faz emergir sentimentos das mais variadas fontes, confusos, mas também contraditórios com a tarefa psicológica, a qual deve desvaler-se de qualquer tipo de preconceito ou julgamento valorativo e o profissional que assume tal cargo deve estar ciente e capacitado para isto, pois é imprescindível que tenha uma visão clara de cada situação que se apresenta, olhar este que, se fixado à rigidez das leis, não consegue compreender a imensa complexidade que existe em toda dinâmica familiar, sendo esta o seu principal objeto de trabalho nos casos em questão.  Portanto, o agir psicológico dentro do Sistema Jurídico nos casos de violência doméstica e intrafamiliar, deve priorizar a garantia dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, intervindo sempre com a disposição de melhorar as suas vias de relacionamento e de promover saúde através do reestabelecimento e do fortalecimento dos vínculos familiares rompidos.

REFERÊNCIAS

BRASIL, Ministério da Saúde. Violência Intrafamiliar: Orientações para Prática em Serviço. Secretaria de Políticas de Saúde: Brasília, 2001. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/cd05_19.pdf> Acesso em: 29 de novembro de 2011.

BRASIL. Lei 11.340 de 7 de agosto de 2006. Dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher e dá outras providências. In: República Federativa do Brasil. Brasília, 2006.

CESCA, Taís Burin. O Papel do Psicólogo Jurídico na Violência Intrafamiliar: Possíveis Articulações. In: Psicologia & Saúde, vol. 16, n° 3. Porto Alegre, dez. 2004. 41-46. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/psoc/v16n3/a06v16n3.pdf> Acesso em: 29 de novembro de 2011.

GONÇALVES, Hebe Signorini. Infância e Violência no Brasil. Rio de Janeiro: NAU, 2003.

2 comentários:

  1. Morgani o teu assunto me chamou atenção por se tratar da violencia intrafamiliar ,que hoje em dia está ocorrendo muito sendo muita destacada na midia e acho que nos como futuros psicologos devemos estar em constante informaçaõ sobre esse assundo pois em nossa carreira POderemos nos deparar com esses casos.
    CRISTIANE MACHADO

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  2. Morgani, é inegável que o assunto chame atenção e gere polêmica, afinal, pensamos ser a família o espaço onde se dá a proteção, além da transmissão de valores e costumes como tu bem falaste. Pensar a violência nesses casos, o que vem crescendo - tanto em discussão quanto em relatos - mostra-se oportuno, visto que o pensar é a primeira forma do agir. Ótima postagem.
    -Paula Biazus-

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